Apresentamos a você amigos, mais uma crônica de Toni Cristo, que nos presenteia com este belo texto, fazendo memória de nosso município.
O MEU
VELHO TRAPICHE
Pensei hoje em sentar
na cabeceira do trapiche. Ouvir um violão, degustar uma cerveja ou, quem sabe,
uma caipirinha. A bebida na verdade é o que menos importa. Meu desejo maior é
reacender o passado. Desfrutar do sossego que um dia experimentei ali.
Mas, cadê o trapiche? O
trapiche ou a “ponte grande”, apelido carinhoso que surgiu ao sabor da
criatividade dos mojuenses.
Erguido sobre vigas de
madeiras assoalhava uma nesga do rio. As águas escuras ao correrem por debaixo
da ponte amorteciam nas toras, provocando um vigoroso som. Era extasiante e às
vezes, aquele barulho, era capaz de acalmar as agruras da vida.
Na cabeceira do trapiche, obtinha-se a visão fascinante
daquela pequena cidade.
De costas para o rio podia-se contemplar os
maiores prédios: o religioso e o outro político. Logo em frente a pequena praça
de uma arquitetura simples e acolhedora. Contavam-se nos dedos das mãos o
número de assentos. No centro um círculo de onde saiam pistas de passeio. Sua
simplicidade não era capaz de ofuscar a sensação de liberdade que lá existia.
Ali iniciavam-se paqueras, revelavam-se namoros e paixões; inauguravam-se
beijos, testemunhavam-se matrimônios. Uns duradouros, outros efêmeros e alguns eternos.
Os assíduos da praça sussurravam cantigas sob
o olhar vigilante de Jesus Cristo.
Nosso Senhor escuro!
Nosso Pai celestial! Senhor das mãos
protetoras!
De frente para o rio, a mata densa, ostentavam
raízes submersas.
As copas dos buritizeiros pareciam competir
qual estaria mais próxima do céu. Não se sabia qual o mais alto. Emaranhavam-se.
Pelos troncos das árvores enroscavam-se
cipós que embebiam a água doce do rio. No topo delas as bromélias que lá criaram
seu habitat. Açaizeiros envergavam-se com cachos frondosos. Quando maduros
seriam arremessados naquelas águas. O certo é que haveria quem os saboreasse.
No fim da tarde pássaros ensaiavam
coreografia com suas próprias canções. Da cabeceira do trapiche, via-se o calmo
remar dos pescadores na busca diária do seu sustento. As experientes mãos
calejadas da roça ainda suportariam carregar a tarrafa e a zagaia. Aprumavam-se
silentes na estreita canoa. Um pé cá e outro lá. Era o equilíbrio permanente pela
sobrevivência.
A cena era o “combustível” para qualquer
espécie de arte.
Nas vigas do trapiche não se atracavam apenas
barquinhos. Amarrados nas toras oscilavam os sonhos de poetas transeuntes. A “ponte
grande” inspirava versos e poesias. Serviu de palco à cultura. Os momentos são memoráveis.
Minha terra nunca foi tão teatral, mas abriga
uma legião de leigos que respirava ao sabor da arte.
O nosso trapiche! Ah, que saudade!
Ali se ouviam canções de Caetano, Chico,
Gil... Os ouvidos, vez ou outra, lembram “Não Chores mais”, de Bob Marley,
cantada por Gil.
Naquela ponte repetiam-se estórias mal
assobradas. O medo não me furtava a vontade de ficar atento e curioso para
ouvi-las. E as lendas se multiplicavam em mim - mulher sem cabeça; mulher do
fogareiro; a carroça da meia noite; o homem que andava por cima do rio - estórias
da infância guardadas na memória, inesquecíveis.
Na “ponte grande” comemorava-se o time
campeão da cidade. Gritos, festa e estrondo dos foguetes. Às vezes, sobressaia-se
o vermelho; outras predominava o preto e o branco, mas não era raro, o verde
floresta. Cores dos nossos times que o trapiche recebia sem distinção.
Com as mãos para o alto, no mês de
maio, o povo saudava e pedia bênçãos ao Divino-Pai e Divino-filho. Ambos
despontavam do baixo e do alto rio Moju, acompanhados por caboclos e caboclas
das margens do rio das cobras.
Daquele trapiche, via-se a onda gigante
da pororoca, causando o estremecer naquelas toras.
O velho trapiche significava não
somente o início de uma nova fase, como também o final de etapa vencida. Ali
chegavam e partiam pessoas, e com elas locomoviam-se sonhos intermináveis. Abrigava
também o encontro dos boêmios, os que resistiam à noite para continuar a ver o
clarão da lua, até o raiar do novo dia.
A ponte grande “afundou”. Com ela desapareceu parte
do brilho de nossa história. Emergiu-se o concreto com pilastras altas cobrindo
pequena parte de nosso estirão. Naquele concreto percorrem cansados e medrosos condutores
de veículos, impedidos de contemplar tamanha paisagem, que outrora motivou olhares
poéticos.
As pilastras de concreto não têm a
poesia da nossa “ponte grande”. Não há o som da música. Não há a interpretação
da poesia. Não se ouve o ruído das cordas do violão e nem se escuta as vozes desafinadas
da boemia. Não há histórias e nem estórias.
O trapiche foi erguido para emocionar com chegadas e
partidas, mas foi capaz de unir outros sentimentos. Despertou talentos. Fez risos
e choros. Semeou emoções.
A “ponte grande” não convergia às margens opostas, mas era
o liame agregador de pessoas e sentimentos. Criava a união e amenizava a
calmaria dos fins de semana, sem, contudo, subtrair a quietude costumeira. Esse
é um retrato que não se esvai com o passar do tempo. E eu o guardarei em mim
por essa vida afora. Será sempre o pequeno refúgio, acolhido em minha alma para
lembrar um tempo de ternura e paz.
ANTONIO LÚCIO CARDOSO
CRISTO
Crônica “O Meu Velho
Trapiche”. Homenagem ao Trapiche Municipal de Moju, que ficou apenas na
memória. (18.09.2018)