O Meu Velho Trapiche, homenagem ao Trapiche Municipal de Moju, uma crônica de Antônio Lucio

By | setembro 19, 2018 Faça um comentário

Apresentamos a você amigos, mais uma crônica de Toni Cristo, que nos presenteia com este belo texto, fazendo memória de nosso município.

O MEU VELHO TRAPICHE

Pensei hoje em sentar na cabeceira do trapiche. Ouvir um violão, degustar uma cerveja ou, quem sabe, uma caipirinha. A bebida na verdade é o que menos importa. Meu desejo maior é reacender o passado. Desfrutar do sossego que um dia experimentei ali.
Mas, cadê o trapiche? O trapiche ou a “ponte grande”, apelido carinhoso que surgiu ao sabor da criatividade dos mojuenses.
Erguido sobre vigas de madeiras assoalhava uma nesga do rio. As águas escuras ao correrem por debaixo da ponte amorteciam nas toras, provocando um vigoroso som. Era extasiante e às vezes, aquele barulho, era capaz de acalmar as agruras da vida.
 Na cabeceira do trapiche, obtinha-se a visão fascinante daquela pequena cidade.
 De costas para o rio podia-se contemplar os maiores prédios: o religioso e o outro político. Logo em frente a pequena praça de uma arquitetura simples e acolhedora. Contavam-se nos dedos das mãos o número de assentos. No centro um círculo de onde saiam pistas de passeio. Sua simplicidade não era capaz de ofuscar a sensação de liberdade que lá existia. Ali iniciavam-se paqueras, revelavam-se namoros e paixões; inauguravam-se beijos, testemunhavam-se matrimônios. Uns duradouros, outros efêmeros e alguns eternos.
  Os assíduos da praça sussurravam cantigas sob o olhar vigilante de Jesus Cristo.
    Nosso Senhor escuro!
    Nosso Pai celestial! Senhor das mãos protetoras!  
    De frente para o rio, a mata densa, ostentavam raízes submersas.
    As copas dos buritizeiros pareciam competir qual estaria mais próxima do céu. Não se sabia qual o mais alto. Emaranhavam-se.
    Pelos troncos das árvores enroscavam-se cipós que embebiam a água doce do rio. No topo delas as bromélias que lá criaram seu habitat. Açaizeiros envergavam-se com cachos frondosos. Quando maduros seriam arremessados naquelas águas. O certo é que haveria quem os saboreasse.
    No fim da tarde pássaros ensaiavam coreografia com suas próprias canções. Da cabeceira do trapiche, via-se o calmo remar dos pescadores na busca diária do seu sustento. As experientes mãos calejadas da roça ainda suportariam carregar a tarrafa e a zagaia. Aprumavam-se silentes na estreita canoa. Um pé cá e outro lá. Era o equilíbrio permanente pela sobrevivência.
       A cena era o “combustível” para qualquer espécie de arte.
       Nas vigas do trapiche não se atracavam apenas barquinhos. Amarrados nas toras oscilavam os sonhos de poetas transeuntes. A “ponte grande” inspirava versos e poesias. Serviu de palco à cultura. Os momentos são memoráveis.
       Minha terra nunca foi tão teatral, mas abriga uma legião de leigos que respirava ao sabor da arte.
        O nosso trapiche! Ah, que saudade!
        Ali se ouviam canções de Caetano, Chico, Gil... Os ouvidos, vez ou outra, lembram “Não Chores mais”, de Bob Marley, cantada por Gil.  
         Naquela ponte repetiam-se estórias mal assobradas. O medo não me furtava a vontade de ficar atento e curioso para ouvi-las. E as lendas se multiplicavam em mim - mulher sem cabeça; mulher do fogareiro; a carroça da meia noite; o homem que andava por cima do rio - estórias da infância guardadas na memória, inesquecíveis.
         Na “ponte grande” comemorava-se o time campeão da cidade. Gritos, festa e estrondo dos foguetes. Às vezes, sobressaia-se o vermelho; outras predominava o preto e o branco, mas não era raro, o verde floresta. Cores dos nossos times que o trapiche recebia sem distinção.
         Com as mãos para o alto, no mês de maio, o povo saudava e pedia bênçãos ao Divino-Pai e Divino-filho. Ambos despontavam do baixo e do alto rio Moju, acompanhados por caboclos e caboclas das margens do rio das cobras.  
         Daquele trapiche, via-se a onda gigante da pororoca, causando o estremecer naquelas toras.
         O velho trapiche significava não somente o início de uma nova fase, como também o final de etapa vencida. Ali chegavam e partiam pessoas, e com elas locomoviam-se sonhos intermináveis. Abrigava também o encontro dos boêmios, os que resistiam à noite para continuar a ver o clarão da lua, até o raiar do novo dia.
            A ponte grande “afundou”. Com ela desapareceu parte do brilho de nossa história. Emergiu-se o concreto com pilastras altas cobrindo pequena parte de nosso estirão. Naquele concreto percorrem cansados e medrosos condutores de veículos, impedidos de contemplar tamanha paisagem, que outrora motivou olhares poéticos.
            As pilastras de concreto não têm a poesia da nossa “ponte grande”. Não há o som da música. Não há a interpretação da poesia. Não se ouve o ruído das cordas do violão e nem se escuta as vozes desafinadas da boemia. Não há histórias e nem estórias.
            O trapiche foi erguido para emocionar com chegadas e partidas, mas foi capaz de unir outros sentimentos. Despertou talentos. Fez risos e choros. Semeou emoções.  
            A “ponte grande” não convergia às margens opostas, mas era o liame agregador de pessoas e sentimentos. Criava a união e amenizava a calmaria dos fins de semana, sem, contudo, subtrair a quietude costumeira. Esse é um retrato que não se esvai com o passar do tempo. E eu o guardarei em mim por essa vida afora. Será sempre o pequeno refúgio, acolhido em minha alma para lembrar um tempo de ternura e paz.   


ANTONIO LÚCIO CARDOSO CRISTO
Crônica “O Meu Velho Trapiche”. Homenagem ao Trapiche Municipal de Moju, que ficou apenas na memória. (18.09.2018)



               





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