Este conto é o que deu nome ao livro de contos do Professor Tiese, que em seus textos procura sempre retratar o cotidiano da região. Confiram e aproveitem este belo texto.
PELAS
MARGENS DO PARÁ
Já fazia quase quinze anos
que ela estava distante daquele ambiente, mas era como se nunca tivesse se
afastado dele. Tudo era profundamente familiar. O balançar da rede, o barulho
do motor, o piloto com as mãos firmes no leme, o cozinheiro abrindo a lata de
conserva no preparo do almoço... A beira do rio passando através do quadro vivo
da janela da canoa. A cada novo estirão, uma nova lembrança da vida que vivera
naquelas paragens.
Madalena era ribeirinha.
Filha de pais seringueiros. Trabalhou nos seringais até os 17 anos. Detestava o
cheiro que a borracha deixava em seu corpo. Era motivo de chacota para muitos.
Fugiu de casa, às vésperas de uma sexta-feira Santa, para viver com um
comerciante, de nome Benedito. A união durou pouco. Passou um tempo morando na
Capital do Estado, onde aprendeu um pouco sobre o ofício de cuidar de cabelo.
Aproveitou também para absorver aspectos da cultura de uma cidade grande da
Amazônia, da década de 1950, em especial, nos trajes e modos de falar.
Regressou ao seu local de
nascimento e tornou-se a sensação entre os homens do lugar. Morena cor de jambo
– diziam - longos cabelos, olhos negros, sorriso iluminado, alegre, ela estava
sempre disposta a participar de uma boa festa. Quando não tinha uma, ela mesma
promovia. Não levava desaforo pra casa. À época morava com uma irmã mais velha,
onde sentia-se livre do julgo paterno do qual tanto reclamava na infância.
Enquanto a viagem seguia,
lembra-se das inúmeras festas que participou. Às de Nossa Senhora da Soledade eram
um caso especial. A Vila naqueles dias de agosto transformava-se no centro das
atenções. Vinha gente de todo lado. Diziam que até da capital. Muitas
embarcações. Todas enfeitadas com bandeiras coloridas recebiam pintura nova
para a ocasião, muitos fogos, e muita gente... Bandas marciais e músicas
inesquecíveis. Momentos únicos.
Foi em uma festa daquelas
que conheceu Miguel, o homem com quem, bem mais tarde constituiria sua família.
O ano era 1957, Madá, como chamavam os íntimos, era responsável pelo preparo da
Maniçoba e do Pato no Tucupi, comidas
que ela adorava. Miguel aproximou-se e de forma desajeitada disse que tinha
vindo buscar a comida. Madá, com lenço de cores fortes amarrado na cabeça,
mandou que sentasse e esperasse que a comida ainda não estava pronta, mas logo
estaria. Miguel sorriu de forma tímida e sentou-se.
Suas lembranças foram
interrompidas, pelo som da voz do cozinheiro avisando que o almoço estava
pronto. Ela nem estava com fome, tomou uma cuia com mingau de arroz, aguado como
açaí, na última parada da viagem. Deixaria o almoço pra mais tarde.
Perguntou ao piloto onde
seria a próxima parada, sabia que em breve teria que ir ao banheiro. O rapaz a
tranquilizou, em breve chegariam à casa do Seu Paulo, um velho amigo de Madá.
Madá estava viajando para
fazer a luminação, como se diz por
aqui, era véspera de finados e como manda a sua crença, tinha que acender velas
para os entes queridos. O cemitério em que sua mãe e um filho estavam
sepultados ficava à margem direita do rio, e depois de muitos anos ela decidiu
que havia chegado a hora de visitá-los, quando morava nas proximidades do
local, todos os anos acendia velas no dia 02 de novembro, dias antes mandava
cuidar das sepulturas, pintava, limpava, colocava flores... Depois, mudou-se
pra cidade, ficou mais difícil e agora estava com 66 anos, e uma saúde frágil,
a viagem exigia um esforço concentrado.
Viajava na canoa de seu
compadre João Boto - Diziam que ele era filho de boto- Regatão para alguns,
marreteiro para outros. Na viagem de subida levava principalmente mantimento,
gêneros de primeira necessidade: café, açúcar, sal, charque e peixe salgado,
querosene, sabão,... Remédio pra febre, diarréia. Na “baixada” receberia o pagamento em farinha, banana... Madeira e às
vezes algum dinheiro em espécie. Nos rios do interior do Pará, muitas relações
comerciais ainda se davam assim. Madalena conhecia bem aquele mundo.
Os viajantes aproximavam-se
da casa do Seu Paulo. Parada obrigatória. Sempre fazia bons negócios com os marreteiros.
Madá assistiu aos poucos a canoa se aproximar do porto da casa, e rostos que
ela não via há muito tempo, apareciam e enchiam seu coração de felicidade. Foi
Tatá quem primeiro a reconheceu. Deu um demorado sorriso e acenou entusiasmada
para a amiga de infância. Não se viam há pelo menos dois anos. Subiu as
escadas, foi recebendo as boas-vindas e sentindo-se como se nunca tivesse saído
daquele mundo. Vida simples. Gente simples. Vida que de agora ela sentia tanta
falta.
Tatá quis saber o motivo da viagem.
Madalena explicou. Disse-lhes que ficaria na casa do irmão Mário, mais acima um
pouco da casa da amiga. Enquanto Paulo e o Boto negociavam, as duas mataram um
pouco da saudade. Trocaram informações sobre amigos e amigas em comum... O
tempo parecia correr mais que o normal. Despedidas. Logo a viagem recomeçou.
Mais uns vinte minutos e Madá chegaria a seu destino. No tempo restante da
jornada, desarmou a rede, fechou as sacolas... Debruçou-se na janela da canoa e
contemplou a beleza da paisagem ribeirinha que parecia ter mudado muito pouco,
desde sua infância. Árvores de açaí, barrancos, pequenas canoas... Água
transparente. Avistou a casa se seu irmão. Sua viagem de subida estava chegando
ao final.
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