"Pelas margens do Pará, conto amazônico premiado de Tiese Junior

By | setembro 14, 2013 Faça um comentário
Este conto é o que deu nome ao livro de contos do Professor Tiese, que em seus textos procura sempre retratar o cotidiano da região. Confiram e aproveitem este belo texto.

PELAS MARGENS DO PARÁ

Já fazia quase quinze anos que ela estava distante daquele ambiente, mas era como se nunca tivesse se afastado dele. Tudo era profundamente familiar. O balançar da rede, o barulho do motor, o piloto com as mãos firmes no leme, o cozinheiro abrindo a lata de conserva no preparo do almoço... A beira do rio passando através do quadro vivo da janela da canoa. A cada novo estirão, uma nova lembrança da vida que vivera naquelas paragens.
Madalena era ribeirinha. Filha de pais seringueiros. Trabalhou nos seringais até os 17 anos. Detestava o cheiro que a borracha deixava em seu corpo. Era motivo de chacota para muitos. Fugiu de casa, às vésperas de uma sexta-feira Santa, para viver com um comerciante, de nome Benedito. A união durou pouco. Passou um tempo morando na Capital do Estado, onde aprendeu um pouco sobre o ofício de cuidar de cabelo. Aproveitou também para absorver aspectos da cultura de uma cidade grande da Amazônia, da década de 1950, em especial, nos trajes e modos de falar.
Regressou ao seu local de nascimento e tornou-se a sensação entre os homens do lugar. Morena cor de jambo – diziam - longos cabelos, olhos negros, sorriso iluminado, alegre, ela estava sempre disposta a participar de uma boa festa. Quando não tinha uma, ela mesma promovia. Não levava desaforo pra casa. À época morava com uma irmã mais velha, onde sentia-se livre do julgo paterno do qual tanto reclamava na infância.
Enquanto a viagem seguia, lembra-se das inúmeras festas que participou. Às de Nossa Senhora da Soledade eram um caso especial. A Vila naqueles dias de agosto transformava-se no centro das atenções. Vinha gente de todo lado. Diziam que até da capital. Muitas embarcações. Todas enfeitadas com bandeiras coloridas recebiam pintura nova para a ocasião, muitos fogos, e muita gente... Bandas marciais e músicas inesquecíveis. Momentos únicos.
Foi em uma festa daquelas que conheceu Miguel, o homem com quem, bem mais tarde constituiria sua família. O ano era 1957, Madá, como chamavam os íntimos, era responsável pelo preparo da Maniçoba e do Pato no Tucupi, comidas que ela adorava. Miguel aproximou-se e de forma desajeitada disse que tinha vindo buscar a comida. Madá, com lenço de cores fortes amarrado na cabeça, mandou que sentasse e esperasse que a comida ainda não estava pronta, mas logo estaria. Miguel sorriu de forma tímida e sentou-se.
Suas lembranças foram interrompidas, pelo som da voz do cozinheiro avisando que o almoço estava pronto. Ela nem estava com fome, tomou uma cuia com mingau de arroz, aguado como açaí, na última parada da viagem. Deixaria o almoço pra mais tarde.
Perguntou ao piloto onde seria a próxima parada, sabia que em breve teria que ir ao banheiro. O rapaz a tranquilizou, em breve chegariam à casa do Seu Paulo, um velho amigo de Madá.
Madá estava viajando para fazer a luminação, como se diz por aqui, era véspera de finados e como manda a sua crença, tinha que acender velas para os entes queridos. O cemitério em que sua mãe e um filho estavam sepultados ficava à margem direita do rio, e depois de muitos anos ela decidiu que havia chegado a hora de visitá-los, quando morava nas proximidades do local, todos os anos acendia velas no dia 02 de novembro, dias antes mandava cuidar das sepulturas, pintava, limpava, colocava flores... Depois, mudou-se pra cidade, ficou mais difícil e agora estava com 66 anos, e uma saúde frágil, a viagem exigia um esforço concentrado.
Viajava na canoa de seu compadre João Boto - Diziam que ele era filho de boto- Regatão para alguns, marreteiro para outros. Na viagem de subida levava principalmente mantimento, gêneros de primeira necessidade: café, açúcar, sal, charque e peixe salgado, querosene, sabão,... Remédio pra febre, diarréia. Na “baixada” receberia o pagamento em farinha, banana... Madeira e às vezes algum dinheiro em espécie. Nos rios do interior do Pará, muitas relações comerciais ainda se davam assim. Madalena conhecia bem aquele mundo.
Os viajantes aproximavam-se da casa do Seu Paulo. Parada obrigatória. Sempre fazia bons negócios com os marreteiros. Madá assistiu aos poucos a canoa se aproximar do porto da casa, e rostos que ela não via há muito tempo, apareciam e enchiam seu coração de felicidade. Foi Tatá quem primeiro a reconheceu. Deu um demorado sorriso e acenou entusiasmada para a amiga de infância. Não se viam há pelo menos dois anos. Subiu as escadas, foi recebendo as boas-vindas e sentindo-se como se nunca tivesse saído daquele mundo. Vida simples. Gente simples. Vida que de agora ela sentia tanta falta.
Tatá quis saber o motivo da viagem. Madalena explicou. Disse-lhes que ficaria na casa do irmão Mário, mais acima um pouco da casa da amiga. Enquanto Paulo e o Boto negociavam, as duas mataram um pouco da saudade. Trocaram informações sobre amigos e amigas em comum... O tempo parecia correr mais que o normal. Despedidas. Logo a viagem recomeçou. Mais uns vinte minutos e Madá chegaria a seu destino. No tempo restante da jornada, desarmou a rede, fechou as sacolas... Debruçou-se na janela da canoa e contemplou a beleza da paisagem ribeirinha que parecia ter mudado muito pouco, desde sua infância. Árvores de açaí, barrancos, pequenas canoas... Água transparente. Avistou a casa se seu irmão. Sua viagem de subida estava chegando ao final.








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