O ÔNIBUS QUE ENSINOU VOOS - UMA CRÔNICA DE ANTÔNIO CRISTO

By | março 01, 2018 1 comment
A virtude de escrever está enraizada desdes tempos de juventude deste mojuense, que já na década de 80 se aventurava em composições para os sambas enredos do carnaval de nosso município. Destacamos o samba enredo da MUP (Mocidade Unida da Pedreira) "Moju, natureza, magias e lendas" em parceria com Ademar do Rancho. Muitos ainda devem lembrar:
"A Pioneira encanta, e vejam só quanta beleza, pede licença ao seu povo, à sua gente para falar da natureza [...]"
Aventurando-se na arte da escrita, nos brinda com esta crônica, deliciosa de se ler e relembrar os tempos difíceis dos alunos que precisavam sair do município em busca de mais formação. Deleitem-se com o texto que lhes apresento. Que venham muitos outros!

Esta crônica é uma homenagem a todos os estudantes que tiveram o prazer em andar num ônibus escolar no final da década de 70 até a metade da de 80, de Moju para Abaetetuba.
Antonio Lúcio Cardoso Cristo (Toninho)


O ÔNIBUS QUE ENSINOU VOOS

     O passar do tempo revelou a vontade de fazer essa homenagem, só não sabia como.
Havia a vontade de contar um fato do passado, porém estava presente o dilema de como homenagear um ônibus. Sim, um ônibus que transportou estudantes da década de 80, de minha cidade à outra.
Enfim, a ideia desta crônica surgiu.
    Para falar do ônibus preciso esboçar alguns episódios.
Morar no interior têm certas facilidades, mas, vez ou outra, aparecem dificuldades que nem sempre são reveladas. O interiorano não lamenta agruras, são ofuscadas pela existência de belas histórias que as sobrepõem.
       Em Moju, do final da década de 70 e até a metade da década de 80, os estudantes, ao concluírem o ensino fundamental, deveriam interromper seus estudos, salvo os que tinham recursos financeiros, ou os que possuíam parentes morando na Capital.
     Pois bem, na década de 80, quem não preenchia os dois requisitos e visava um “canudo” do nível médio, deveria abstrair obstáculos e complementar seus conhecimentos em Abaetetuba. Era o ir e vir diário num transporte de quarenta lugares. Nada a ver com os ônibus de hoje.
     Vinte quilômetros separam Abaetetuba de Moju. Pertinho!
     À época, uma estrada de piçarra e uma travessia de barquinho pô-pô-pô sobre o rio. A ponte de concreto que, atualmente, liga um lado ao outro, nem sonhada era.
     Durante um tempo muitos estudantes fizeram esse trajeto em busca de oportunidades. Muitas aventuras surgiram, cada dia poderia ser escrita uma crônica nova.
     A saída do ônibus diária ocorria no final da tarde e o retorno no fim da noite, isso quando a velha condução não sofria o chamado "prego". O que não era raro!
     Várias noites ficou-se na estrada à procura de um conserto e sem comunicação. Celular nem lenda era!
     E assim, quando o tão necessário veículo não conseguia locomover os estudantes - e muito menos se mover-, o jeito era deixá-lo para trás e utilizar as próprias pernas, pois devagar seria certa a chegada em casa. A estrada nem sempre estava escura, com sorte poderia se ver um céu estrelado. Na andança uns cantarolavam; outros contavam histórias de visagens; outros ousavam nas piadas... assim o tempo passava mais rápido. Na chegada do “outro lado do rio” haveria o coletivo grito até que o barqueiro ouvisse e fizesse a travessia do rio.
     Horas mais tarde as pernas e os pés, mesmo doloridos, estariam prontos para uma nova aventura. A dor e o prazer, caminhavam sempre juntos.
     Apesar de tudo pouca lamúria existia e a vontade de continuar persistiu naqueles anos.
 Ah bendito ônibus! Me ensinaste a voar!
     Um ônibus de cor prata, listras azuis e vermelhas, voltam-me à memória, bem como as cadeiras vermelhas, assento duro com rajados brancos. Assento que não era poltrona e comportava duas pessoas, com um encosto que ia até o meio das costas e que dificilmente daria para tirar um cochilo, mas não era de todo impossível. Era preciso acostumar-se ao forte calor, e se as janelas fossem abertas, ocorreria o vendaval de poeira. As janelas possuíam bandas duplas de vidro as quais deslizavam ao abrir, emitindo um forte rangido que incomodavam até os dentes. Quando chovia, a água que escorria suas mágoas empoeiradas. No meio do piso do corredor um buraco mostrava-se promissor. E se não estivesse tapado com folhas de caderno, a poeira da estrada invadia tudo, empurrada pelas inconvenientes rajadas de ventos que insistiam em se juntar aos sonolentos passageiros.
     Guardava-se sempre um retalho de tecido velho para limpar os assentos empoeirados, reduzindo assim o desgaste do uniforme escolar, quase sempre tão amarelado.
     De tempo em tempo os estudantes faziam uma lavagem geral naquele ônibus. Nada mais justo. Um misto de amor e ódio. Como acontece com qualquer casal que quer manter a relação em mágico equilíbrio! O Igarapé Santa Cruz era o local predileto para aquela lavagem. Além da limpeza, havia a satisfação da reunião, com o complemento do violão, da música e da caipirinha. O banho era regado ao som de Caetano, Djavan, Chico, Gil, Fagner e tantos outros. Muitas canções, lembro de ter aprendido naquelas cantarolas.
      O velho ônibus conduziu não apenas estudantes, carregou sonhos, alegrias, tristezas, decepções, traumas, inquietações e ensinou voos, enveredando outros destinos. Não tenho a pretensão de afirmar que os passageiros daquele ônibus foram exemplos para outras gerações. Não!  
     O tempo passou. Não há mais ônibus; não há barquinho; e as canções aos poucos foram se falando. Não há mais andanças, exceto pela vida afora. Ficaram lembranças!
     Agora outros ônibus circulam. Os estudantes desceram e acenaram a outros ônibus, seguindo rumos diversos, alguns opostos. Restaram as histórias. Essa é mais uma delas!
     Alguém disse que a vida é um punhado de recordações. Assim creio!
     Opa! Estou viajando em ônibus que freou. Desço na próxima parada e, talvez, consigo pegar o próximo. Aqui faço uma pausa, mais tarde, certamente, continuarei.

ANTÔNIO LÚCIO CARDOSO CRISTO
Mojuense, formado pelo Centro de Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Pará (1990). Pós graduado em Direito Tributário pela Universidade da Amazônia (2003). Doutorando em Direito pela Universidade de Mar Del Plata, Argentina. Atualmente é analista judiciário - Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Tributário na Procuradoria do Município de Belém, no Departamento de Tributos Mobiliários e Imobiliários da Secretaria de Finanças do Município de Belém e Consultoria Jurídica da Secretaria de Fazenda do Estado do Pará.




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1 comentários:

Nazaré Castro disse...

Moju berço da poesia!
Parabéns aos nossos escritores.